Santa Dulce dos pobres

A Santa e os Orixás

Era um dia de sábado quente em Salvador. O sol ardia na pele, no início daquele mês de março do ano de 90. Mas o suor que escorria do rosto era frio. Descia tenso pelo rosto e se misturava às lágrimas que não paravam de fluir. O jovem Silvanilton Encarnação, à época com a idade de 26 anos, caminhava sozinho pelas ruas. No peito um enorme aperto, mas na alma a esperança e a fé.

Sua mãe, Nilzete Encarnação Austriquiliano,mais conhecida como Mãe Nilzete de Yemọja, tinha sofrido um aneurisma desde o início do mês e permanecia internada há vários dias no Hospital Jorge Valente. Seu quadro era grave… Já havia sido submetida a um cateterismo e estava em coma. O médico que assistia Mãe Nilzete, o Dr. Márcio Brandão, prescreveu cloridrato de papaverina. Contudo, a substância estava em falta no hospital.

Apesar da dificuldade, Silvanilton não se deu por vencido. Percorreu todas as farmácias da cidade e nada… Finalmente soube, que apenas o Exército fabricaria aquele medicamento. Mas a quem recorrer? Como teria acesso? Quem iria ajudá-lo? Não poderia desistir… Além da família, todos os filhos de santo, amigos e admiradores estavam preocupados, sentindo a ausência de Mãe Nilzete. Todos na expectativa de conseguir o remédio.

A essa altura, a tarde estava alta. O pôr do sol deu ao céu um rosado bonito. Cansado e atônito, sem saber como arranjar o remédio, caminhava pelo Largo de Roma. Seus pés o guiavam para lá. Silvanilton lembrou-se então da Irmã Dulce. Ele estava bem pertinho do Lar de Irmã Dulce, que ficava logo adiante, na Av. dos Dendezeiros, ali no Bonfim. Só podia ser Èṣù a lhe abrir os caminhos! Encheu-se de esperança, apertou os passos e seguiu confiante em busca da ajuda daquela freira conhecida por sua generosidade.

Já era início da tarde e os atendimentos tinham se encerrado. Um suspiro sentido escapou do peito de Silvanilton, quando ele encontrou o enorme portão azul de ferro, do Lar de Irmã Dulce, fechado… Apesar do obstáculo, Silvanilton perseverou:

– Alguém! Tem alguém aí?

E nada… Insistiu novamente, na base do desespero: – Irmã Dulce! Irmã Dulce!

Até que alguém respondeu impacientemente, abrindo o portão: – Rapaz, não está vendo que acabou o atendimento!

– Eu só queria falar com a Irmã Dulce… Disse Silvanilton.

– Irmã Dulce está descansando. Ela está com insuficiência respiratória. Não vou chamá-la. Volte aqui segunda feira. Falou uma senhora, já fechando o grande e pesado portão azul diante de Silvanilton.

Não tinha o que fazer… Paralisado, quando ouviu o trinco se fechar do outro lado, sentiu que suas chances haviam se esgotado. Virou-se lentamente e saiu dali cabisbaixo, andando sem rumo. Encontrou um banco de praça e deixou seu corpo sentar-se pesadamente, como um prédio que desaba sem a base do alicerce. Pousou os braços sobre as pernas, juntou as mãos e cobriu o rosto molhado de pranto. Fome, cansaço e a apreensão se misturavam. E agora? O que fazer? O tempo que passou naquele banco, ele não soube medir. Até que sentiu a chuva caindo. A chuva o despertou daquele estado de torpor. As gotas do céu aliviavam o calor. Traziam alento. O gotejar macio acariciava seu corpo cansando. Respirou fundo, pensando agora para onde iria. Quando levantou a cabeça, viu um lindo arco íris colorindo o céu. Era Òṣùmàrè! Ele apareceu! A divindade do arco íris lhe trazia uma nova esperança! Era o seu òrìṣà mostrando presença! Ele não se sentia mais sozinho! Não devia desistir! Uma súbita energia revigorou seu corpo e o encheu de coragem. Num impulso, levantou-se do banco e voltou ao Lar de Irmã Dulce. Vou insistir! – pensou.

Rapidamente chegou ao portão e gritou novamente, com ênfase:

– Irmã Dulce! Irmã Dulce! E nada…

– Irmã Dulce! Irmã Dulce! Perseverou.

A mesma senhora que o atendeu da outra vez gritou de longe, ríspida, por trás do portão:

– Rapaz, já não lhe disse que o atendimento acabou! Não vou chamar Irmã Dulce. Ela está descansando! Volte para sua casa e venha segunda feira!

Quando Silvanilton preparava para se justificar e explicar sua história, ouviu uma voz baixa, mas firme, vindo lá de cima, do segundo andar do prédio da instituição:

– Deixem o rapaz entrar! Ele quer falar comigo! Deixem o rapaz entrar! Era Irmã Dulce, gritando do seu quarto.

Um silêncio se fez ouvir. A senhora que falava com Silvanilton respondeu a Irmã Dulce de onde estava, mas mudando o tom:

– Já expliquei ao rapaz que o atendimento acabou… Falou meio que se desculpando.

– Mas se tem alguém querendo falar comigo é porque precisa de ajuda. Deixe o rapaz entrar! Repetiu Irmã Dulce terminando a frase com uma tosse seca.

A mulher então abriu apenas uma brecha do portão, sem olhar para Silvanilton, e disse:

– Suba a escada. É o primeiro quarto a direita.

Silvanilton entrou e subiu rápido a escadaria. Chegou ofegante ao quarto indicado. Quando viu Irmã Dulce não se aguentou. Abraçou firme aquela senhora frágil, ajoelhando-se na beira da cama em que ela estava deitada, como uma criança que se agarra à mãe em desespero. Entrou em pranto encharcando o lençol com suas lágrimas. Irmã Dulce acariciou seu cabelo pacientemente, até que se acalmasse. Ainda soluçando, Silvanilton levantou o rosto molhado e antes que dissesse algo, Irmã Dulce virou a cabeça de lado, franziu a testa forçando a visão e falou:

– Você não é aquele menino, filho de Mãe Nilzete? O que nasceu dentro do Terreiro de Òṣùmàrè?

– Sou, sim! Respondeu Silvanilton, enxugando o rosto na camisa.

– E que o lhe traz aqui? Como posso lhe ajudar?

– É que minha mãe está internada no Jorge Valente… Está em coma… O doutor prescreveu um remédio que não tem lá… Corri todas as farmácias de Salvador, mas está em falta… Disseram que só o Exército fabrica o tal remédio… E não sei como conseguir… A senhora pode me ajudar?

Irmã Dulce então, sem titubear, apontou um telefone no canto do quarto. Pediu a Silvanilton que esticasse o fio e lhe trouxesse o aparelho, enquanto ela ajeitava os óculos com lentes de fundo de garrafa e folheava uma pequena agenda de páginas amareladas, que estava na mesinha de cabeceira, à sua direita. Minutos depois, começou a discar. O barulho da chamada da ligação causava uma certa agonia. Ninguém atendeu… Ela ligou novamente. E outra vez as chamadas se repetiam numa sensação de infinito, até que alguém finalmente respondeu do outro lado da linha.

– Quero falar com o Coronel Herculano! Disse firme Irmã Dulce, segurando a tosse.

O homem que atendeu, perguntou:

– A quem devo anunciar?

– Diga-lhe que é Irmã Dulce e que preciso falar com o coronel com urgência!

Alguns instantes depois, ouve-se outra voz. Esta mais grossa e austera:

– Sim, Irmã Dulce! Como está a senhora!

Antes da resposta uma crise de tosse. Quase sem ar, mas recobrando a autoridade, Irmã Dulce lhe diz:

– Coronel, uma amiga precisa de uma medicação que o senhor tem. Quero que o senhor envie ao Hospital Jorge Valente. Separe uma boa quantidade, por favor.

E desligou o telefone, sem chance para que o militar pudesse argumentar qualquer coisa.

Tirando os óculos, Irmã Dulce esboçou um sorriso afetuoso e olhou ternamente para o jovem Silvanilton dizendo:

– Meu filho, já temos o remédio. Se depender dele, acabou o problema. Mas, vamos rezar… Reze com os seus santos, enquanto eu rezo com os meus. Deus é um só, meu filho! Que seja feita a vontade dele! Que aconteça o melhor para sua mãe!

Silvanilton conseguiu dez grandes caixas que foram enviadas para o Hospital Jorge Valente, com dezenas de embalagens do medicamento. Com isso, atendeu não apenas a sua mãe, mas abasteceu o hospital, que pode socorrer a vários pacientes que também precisavam daquele mesmo tópico.

Naquele dia, Silvanilton conversou com uma santa. Naquele dia inesquecível da sua vida, aprendeu várias lições: solidariedade, generosidade, altruísmo, dedicação e, sobretudo, respeito à diversidade religiosa. Aquela freira, para lhe socorrer, em momento algum questionou sua religião. Em momento algum invadiu sua liberdade, tentando impor seus valores, ou criticou concepções diferentes das que possuía. Só quis ajudar. E ajudou muito! Não apenas a Mãe Nilzete, mas seu gesto foi capaz de atender a dezenas de pacientes, cujos familiares também aguardavam ansiosos pela cura. Deus e os deuses têm sempre seus propósitos e os seus missionários. Silvanilton entendeu que Òṣùmàrè e santa Irmã Dulce se uniram naquele mesmo propósito.

Mãe Nilzete retornou ao ọ̀ run aos 51 anos, no dia 30 de março de 1990. Mas várias mães e vários pais que estavam internados puderam voltar para casa para abraçar seus filhos. A santa e o òrìṣa trabalharam juntos. Irmã Dulce e Òṣùmàrè, naquela tarde, mostraram a Silvanilton que sem amor no coração, que sem fé e determinação, qualquer religião se torna pequena. Ele aprendeu que a união dos povos, a solidariedade entre os humanos é o maior exemplo que os deuses podem nos oferecer.

O jovem Silvanilton assumiu o lugar de Mãe Nilzete na liderança da Casa de Òṣùmàrè. Silvanilton hoje, é Bàbá Pèsè de Òṣùmàrè – como seu nome em ioruba significa: é o provedor escolhido por Òṣùmàrè.

Dois anos depois, no mesmo mês de março, em 1992, Irmã Dulce foi se encontrar com Deus e com Mãe Nilzete. Em festa, todo o ọ̀ run dança em homenagem à santa e ao òrìṣà.

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Márcio de Jagun.

Pedra de Guaratiba, 01 de setembro de 2019.

 

Ricardo Hida é astrólogo, tarólogo e babalorixá. Autor do livro Guia para quem tem Guias – Desmistificando a Umbanda. Apresentador do programa “Encontro Astra”, todas às terças-feiras, às 19h30, na rádio Vibe Mundial, 95,7 FM.


Mais sobre religião aqui:
+ Jesus e os gays
+ Os falsos profetas
+ Seminário de budismo para iniciantes

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